Rita: Conto da escritora Tânia G. Belo

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Rita: Conto da escritora Tânia G. Belo

Rita

As marcas do tempo emolduravam seus olhos, fazendo-a parecer mais velha do que realmente era.

A expressão austera, emoldurada por longos cabelos grisalhos trançados em um coque firme, revelava uma mulher que não priorizava a vaidade.

Os vestidos de linho preto, sua vestimenta diária, eram um testemunho silencioso do luto que a aprisionava há uma década.

A esperança havia se esvaído e os dias se arrastavam em uma monotonia sufocante, sem promessa de novidades.

Na varanda, sob o sol que parecia ignorar sua dor, ela se dedicava a bordar enxovais para noivas e recém-nascidos, um contraste irônico com a aridez de sua própria vida.

A jovem senhora, alheia à ambição, encontrava sustento na pensão do finado e nas encomendas, dispensando as novas indumentárias que jaziam esquecidas na cômoda antiga.

A casa, outrora vibrante, construída pelas mãos do marido, ostentava paredes bege emolduradas por janelas e portas verde-rubras.

A varanda, palco de alegrias passadas, agora exibia cores desbotadas, denunciando a passagem atroz do tempo.

O tique-taque do relógio, como um lamento constante, preenchia o silêncio do lar.

Os anos, como um escultor implacável, moldaram-na em uma figura amarga e pessimista, ancorada nas memórias de um passado que se esvaía como areia entre os dedos.

Os suspiros profundos, como ecos de uma tristeza silenciosa, eram a trilha sonora de sua solidão.
Rita, com ouvidos aguçados pela malícia, deliciava-se com as discussões acaloradas do casal vizinho.

O caos no relacionamento do outro era um bálsamo para sua alma amargurada, um reflexo distorcido de própria felicidade perdida. Julgava a jovem vizinha com a crueldade de quem se alimenta da desgraça alheia:

“Ingrata, il tuo uomo sta com te, peggio senza di lui”.

 

Cada grito, cada soluço, era uma sinfonia para seus ouvidos, um banquete para sua inveja.

“Ben fatto!

Casa dove lá gallina canta più è una casa trista.

Dio lo sà”, murmurava com um sorriso gélido, repetindo o ditado machista que aprendera na infância, um eco da própria submissão.

 

A alegria alheia era uma ferida aberta em sua alma, e a desgraça, um alívio momentâneo.
Ah, como sentia falta do esposo!

O pilar da casa, o provedor, o dono de seu destino.

 

As burocracias, as consultas médicas, tudo era responsabilidade dele, como se ela fosse incapaz de cuidar de si mesma.

E ela se acostumara, afinal, seu pai agia da mesma forma, e sua mãe parecia tão satisfeita.

 

A dependência era um laço que a prendia, uma mistura de obrigação e amor distorcido.

“Como a vida pode ser tão injusta?”, lamentava enquanto bordava fraldas para o bebê da vizinha, um lembrete cruel de um sonho frustrado.

“Sete anos juntos, tantos planos… filhos… era só questão de tempo.

 

” A ironia da situação a corroía por dentro.

Um barulho de estilhaço a arrancou de seus pensamentos.

Na cozinha, cacos de vidro espalhados pelo chão; sobre a mesa, um gato faminto lambendo a carne crua, que ela temperara logo cedo e seria o seu almoço.

 

A fúria tomou conta de Rita, a vassoura em suas mãos se transformou em arma.

 

O gato ergueu a cabeça.

Seus olhos grandes e amarelados refletiam o terror, as pupilas dilatadas denunciavam o medo que o paralisava, um espelho da fragilidade que ela se recusava a admitir.

 

O miado agudo ecoou no silêncio da cozinha, o dorso arqueado, cada músculo tenso; o animal era a personificação do pavor.

Rita viu a fragilidade estampada em cada detalhe do felino: nas costelas salientes sob a pelagem suja, nas patas trêmulas.

Era um animal acuado, encurralado.

Por que a repulsa e a compaixão lutavam dentro dela?

Por que aquele animal franzino e repugnante não era estranho?

A resposta a atingiu como um raio: ela se viu acuada, indefesa, vivendo à margem da própria vida.

Aquele animal, tão frágil e amedrontado, era um reflexo de si mesma.

 

O olhar do animal era uma lança perfurando suas defesas, forçando-a a encarar a verdade.

Ela passara a vida vivendo os sonhos do marido, aprisionada em um papel que acreditara ser o dela.

 

E então aconteceu.

Em um movimento desesperado, o gato saltou da mesa e correu em
direção à porta aberta, sem olhar para trás.

Fugiu como se fugisse da morte, como se fugisse de Rita.
As lágrimas, quentes e salgadas, brotavam em seus olhos enquanto observava a porta, por onde o gato havia escapado.

A solidão a atingiu novamente como um soco no estômago.

“Volta”, sussurrou Rita, a voz embargada pela emoção, um eco fraco em meio ao silêncio ensurdecedor.

“Voltar… para quê?” A pergunta ecoou em sua mente, sem resposta.

Rita encarava a própria solidão refletida nos cacos de vidro espalhados pelo chão, como se cada fragmento fosse um pedaço dela.

 

O vazio se expandia para além das paredes da casa e invadia os recantos mais sombrios de sua alma.
Ela se tornara uma estranha para si mesma, uma figura irreconhecível no espelho da própria mente.

A fúria, antes um fogo que a impulsionava, agora se misturava à compaixão, uma brasa fria que a queimava por dentro.

 

A confusão, como um labirinto de vidro estilhaçado, a prendia em um ciclo de perguntas sem respostas.
“Quem era ela?”, “O que desejava?” As certezas que outrora a guiavam se dissolveram como fumaça, deixando apenas a solidão, fria e implacável, como um lembrete cruel da sua existência.

 

As lágrimas deslizavam por seu rosto, lavando a maquiagem da indiferença, revelando a fragilidade que ela tanto se esforçara para esconder.

Rita agora se via como um animal encurralado, sem rumo, sem esperança.

 

A solidão, antes um conceito abstrato, agora era uma
presença palpável, um manto de gelo que a envolvia, sufocando qualquer vestígio de vida.

Autora: Tânia G. Belo

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